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sábado, 13 de setembro de 2008

Enterro seco

Eu tinha um peixe; assim, no passado. Porque o beta vermelho, peixe de uns cinco centímetros e cauda vistosa, morreu. É curioso como usamos o pretérito quando nos referimos aos mortos (tão curioso quanto a tendência automática em santificá-los). Mesmo correndo o risco de soar romântico demais, afirmo que nestes casos sempre preferi o presente. Acredito que a existência não se finda com a morte; em verdade, acho que o existir depende muito pouco do estar vivo. Quase nada.

Eis como a existência revela-se imaterial, subjetiva e relativa a cada um de nós: é só a partir destas linhas, por exemplo, que o meu peixe existe para você. Antes, era apenas mais um objeto incógnito do meu quarto; não existia, em absoluto, no seu mundo relativo.

Krill é vermelho-tango, de reluzentes e pomposas escamas. Apesar do aviso sincero da vendedora, de que “o peixe duraria no máximo um ano e meio”, Krill não deu ouvidos à estatística; nadou e comeu por longos dois anos e oito meses. Durante todo esse tempo, viu-me rir, chorar, cantar e dormir. Viu inclusive o que não devia, para ser sincera.

Krill costumava reagir de forma agressiva quando estranhos o encaravam por muito tempo. Abria as guelras e investia com força contra a parede do aquário, para depois nadar irritado, em voltas, como que frustrado com as próprias limitações que a vida de peixe impõe. Krill queria mais; queria ser o dono do lugar, o guardião onipresente daquele mundo distorcido pelas deflexões da água. E ele fez questão de deixar isso claro desde o começo da nossa telepática relação – vi-me obrigada a comprar um aquário maior para acabar de vez com os deliberados empurrões contra a tampa anterior. Em outras palavras, aquários de peixe beta não combinavam com o Krill. Em suma, ele nunca foi um beta qualquer – por mais parcial que seja tal afirmação.

Krill morreu com a cabeça pousada na pedra que mais gostava; não boiou. Encontrei-o deitado, olhando em direção à minha cama. Talvez me observava dormir (como ele sempre fazia) pela última vez. Talvez tenha morrido revoltado com o resultado das eleições. Ou talvez tenha enfim percebido que nenhum peixe beta sobrevive tanto tempo. Sei apenas que, enquanto embalava-o em papel alumínio (para depois jogá-lo ao lixo, o cemitério dos pequenos seres urbanos), vi-me constrangida por não sentir nada além de um patético carinho. Não exagero a ponto de achar que Krill merecia um enterro nobre ou luto por sua memória; mas quedei-me com a impressão de que ele merecia uma lágrima, ao menos. “Quem lacrimeja ao ver comercial televisivo pode muito bem derramar uma lágrima em memória de um finado querido”, pensei.

Nessas horas, porém, sempre fui incapaz de chorar.

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